25.11.05

Pedaços de goiabada em sopa de jiló

Estávamos sentados em um dos muitos cafés do centro de Buenos Aires. Meu interlocutor, Jorge Romero, 40 anos, não se apresentava como eu costumava vê-lo. A diferença não estava na calça jeans ou na camisa com a gola poída, mas na falta do avental e da farinha de trigo cobrindo de branco suas mãos e antebraços. Este homem de estatura mediana, rosto redondo, olhar profundo e transparente, gestos simples e definidos, com seus poucos cabelos encaracolados na altura do pescoço, divorciado e pai de dois filhos, a menor saindo da infância e o primogênito já em plena adolescência, ajudou-me a entender melhor o que significa a frase “A massa que faz o pão, vale a luz do teu suor”, da canção “Amor de Índio”, de Beto Guedes.

Jorge é supervisor de uma pequena padaria, escondida pela opulência da Avenida Corrientes, na transversal Tte. Gral. E. Frias, 427. Tornei-me freguês do estabelecimento não por simplesmente experimentar as saborosas facturas (biscoitos, pães e doces) que produz, mas pela alegria, simpatia e generosidade com que Jorge contagia o ambiente.

“Quando estás entre crianças, és uma criança mais”, foi o que disse quando perguntei-lhe a respeito do mural de desenhos infantis pendurado na parede, ao lado esquerdo do balcão de doces, com figuras de pássaros voando, famílias de mãos dadas e até rabiscos, que eu não arriscaria chamar “sem sentido”, com inscrições do tipo “Jorge, te amamos”. Estes pequeninos e fiéis fregueses entram na padaria e correm para trás das vitrines buscando um abraço do tio Jorge. O que faz alguém tão naturalmente alegre, agradável e simpático? Ele diz que é parte do serviço, precisa conquistar os fregueses. No entanto, ninguém consegue viver por muito tempo o que não guarda como real valor. Conhecendo-o um pouco mais, pude entender que no ofício ele simplesmente expressa as verdades em que acredita, mesmo ciente de que faz apenas o trabalho de uma andorinha no sonho de ver vencidas as chamas de um incêndio.

Há quatro anos Jorge se veste de palhaço para fazer sorrir crianças de províncias pobres da Argentina, como Santiago del Estero, onde os habitantes precisam caminhar cerca de cinco quilômetros em busca de água. “O que podemos fazer pelos pobres? Especialmente pelas crianças?”. Diz que esta pergunta lhe foi respondida quando se vestiu de palhaço pela primeira vez no aniversário de um sobrinho.
Como reflexo de dias em que já precisou repartir um único pedaço de pão, após a crise financeira do país em 2001, Jorge e o grupo de voluntários não trabalham com a freqüência que gostariam, por falta de recursos, tanto que, para ajudar sua renda mensal, ele vende caramelos no metrô em seus dias de folga da padaria.

Perguntei-lhe que resultados pretende alcançar com seu trabalho com as crianças. Jorge, então, começou a contar-me histórias, como a de um certo homem que lançava sementes pelo caminho, mas só as que caíram em solo fértil germinaram e cresceram. Disse que não pode tirar as crianças da pobreza, mas pode ensinar valores. “Talvez eu jamais veja os frutos”, mas segue assegurando que as lições que ensina podem formar adultos melhores. Jorge continua a falar das crianças com tanta paixão e veemência que seus olhos ficaram marejados de lágrimas, fato que se repetiu em vários pontos da conversa. Discursava sobre a sensibilidade dos pequeninos; como coisas que, para nós, são tão insignificantes, têm tanto valor para eles. “Conseguem guardar uma bola de soprar, daquelas de aniversário, por quatro dias!”, dizia em voz chorosa: “Quando te dão um beijo, o fazem de coração”.

Jorge faz um apelo falando sobre a semente de mostarda, uma das menores na natureza, mas que se transforma em uma grande planta. “Se darmos o pouco que temos, cada uma dessas plantas darão outras muitas sementes”.

Sobre sonhos, diz que não se importa se os filhos não fizerem duas ou três faculdades, “ainda que tenham uma vida simples, que sejam boa gente, que sejam melhores do que eu”.

Se algum dia estiver em Buenos Aires, aproveite para apreciar delícias em “El Maestro del Sabor”, escondida entre o caos urbano. Não é nenhum ponto famoso, mas as maiores belezas da cidade seguramente não são as indicadas em guias turísticos.

Nos despedimos por aquela tarde, e como era de se esperar, Jorge não me deixou pagar pelo café.

19.11.05

Sobre árvores e frutos

Uma mangueira não pode produzir figos, uvas, morangos ou bananas, mas, pensando bem, uma mangueira não precisa esforçar-se nem mesmo para produzir mangas. Nunca ouvi sobre uma árvore contraindo seu caule fazendo tremer os seus galhos para que aquelas florzinhas se transformem em frutos. A natureza é assim. O céu não precisa sorrir para que o sol apareça, as nuvens não carecem de tristeza para que chova, o vento independe de pressa para correr, a flor perfuma sem paixão, a terra treme sem stress ou pulgas.

Verdade que ele era um bonito rapaz. Nunca podemos dizer o contrário de alguém que tem 85% do seu círculo de conhecidas com essa mesma opinião. Sempre educado, gentil, divertido e muito, muito ansioso por encontrar sua “outra metade”. A cada novo rosto, se após uma rápida análise de cima abaixo, o perfil fosse considerado ao menos o mínimo satisfatório; ali estava uma nova oportunidade. Suas intenções o faziam ainda mais educado, gentil e divertido. Essa espécie de dança do acasalamento era uma isca que muitas mordiam, mas ele nunca as tirava do lago. Toda essa caça era o impulso da esperança de encontrar alguém especial, deveria haver alguém com quem uma agradável conversa ou um intenso silêncio traduziria em bons momentos juntos.

Ele não tinha um histórico de muita passividade em relação aos seus sentimentos e desejos, assim, atirava para todos os lados, até que, enfim, cansou de errar o alvo caindo exausto no sofá. Ao efeito de um profundo suspiro fez uma intrigante descoberta. Ela nunca havia saído da sua lista de amigas para a lista Possibilidades e, ainda assim, ele não era menos educado, gentil ou divertido com ela, só era ele mesmo, vivendo seus reais valores. Percebeu que, com muita probabilidade, a amava.

Resolveu impressioná-la. Não bastava somente dizer o que sentia, não era tão simples assim. Essa Síndrome de Príncipe Encantado pedia uma amostra hollywoodiana de seus sentimentos. A base de uma idéia - Não há nada que uma dançarina goste mais do que dançar. Conclusão desanimadora – Ele era o pior dançarino que já conheceu. No entanto, um probleminha como esse não poderia ser obstáculo para levar a cabo uma estratégia que julgava mostrar-se tão eficiente. Algumas dicas com a mãe, em busca do ponto de vista feminino, outras com o pai, pela experiência; alguns passos com aulas pela TV, outros com amigos e seguiu a ensaiar. Treinou cada detalhe; movimento dos pés, levantar a cabeça, mãos na cintura, olhos nos olhos e um e dois e três e quatro e um e dois… Após duas semanas, pouco êxito, seus pés não obedeciam, as mãos pareciam ter vontade própria e sempre perdia a contagem. Começou a pensar que um dançarino precisa nascer dançando, tinha que ter relação com essa questão de genes ou algo assim. Caiu exausto no sofá, depois de notar aquela dor que começava na coxa e se estendia até os pés, e antes de sussurrar a frase: “Nunca vou conseguir”, entendeu, repentinamente, que realmente não conseguiria se continuasse tentando sem música.

Por fim, basta soarem os instrumentos mais a sensibilidade para ouvir a voz de uma boa canção e um convite sincero aos encantos da pista de dança e poderemos terminar essa história com um belo casamento e lindos bebês engatinhando pela casa.

Quanto ao labutar da árvore por seus frutos, bem, ela só precisa estar plantada, nada mais que isto. Se o solo é realmente fértil, naturalmente, ela se alimenta da terra, e do sol, e do orvalho, e no devido tempo, se exibem seus frutos.

14.11.05

Cita

"Não há nada mais sério que o humor"

4.11.05

Ubi dubium ibi libertas

Um amigo fez algumas críticas sobre o post anterior, argumentando que gastei somente 3 linhas para retratar-me, quase o dízimo de um conflito exagerado que compõe o restante do texto. Ainda que não tenha muita relação com o argumento, acabamos nos lembrando de princípios bem interessantes. O tópico mais forte foi como nossas dúvidas são essenciais no relacionamento com o Inspirador. Uma fé sem dúvidas é uma fé estática, diferente de uma fé com muitas dúvidas, que se torna uma fé relacional.

Com uma cosmovisão bíblica tudo o que tem alguma razão, no sentido de valor essencial à existência humana, torna-se lógico e legítimo, por isso assumo minhas dúvidas, por mais blasfemas que pareçam, e o perseguirei até que me responda. Como diziam os gregos - "Onde há dúvidas há liberdade".


"Busque a mim e eu responderei e lhe direi coisas grandiosas e insondáveis que você não conhece" (Jr. 33:3)