22.7.06

É coisa da nossa cabeça.

Sobre os 3 milhões reunidos na Marcha pra Jesus e a violência em São Paulo

Índice de divórcio; igual. Pobreza; igual. Depressão; igual. Foi essa a conclusão quando comparados os resultados de uma pesquisa que descreveu o perfil dos evangélicos brasileiros, realizada em 2004, com os dados do IBGE. Isso nos faz questionar algumas coisas. Se os nossos índices são iguais aos da sociedade em geral, que diferença pretendemos fazer? Quem realmente está influenciando e sendo influenciado? Estamos sendo pró-ativos ou passivos? Se não estamos somente na defesa, que relevância nossas ações tem tido? Sabemos realmente quem nós somos? Se o sal não salga, ele também apodrece?


O Brasil, hoje, é palco de uma acelerada multiplicação de denominações, de templos abarrotados, de presença evangélica nos grandes centros, nas periferias, nas zonas ruais e até nos sertões. Estamos em todos os lugares. Há uma bancada evangélica no Congresso Nacional, redes evangélicas de rádio e televisão, grandes editoras, associações e sindicatos de empresários cristãos, filósofos cristãos, educadores cristãos e um monte de outros [alguns deles, registro, fazem um trabalho consistente e relevante]. Seria igualmente preocupante, mas não tão alarmante, se nós estivéssemos crescendo, mantendo os valores que regem o cristianismo bíblico dentro do nosso gueto, mesmo que a sociedade continuasse a mesma [como se fosse possível]. Mas nós estamos crescendo, e nos mesmos moldes mentirosos que constroem a mentalidade daqueles que intitulamos ímpios e perdidos. Alguém vai ganhar a guerra das idéias. Não há empate.

Idéias tem consequências. A preleção da nossa cultura, os conceitos formados durante nossa história, o que acreditamos ser real e verdadeiro, certo e errado, bom e bonito, definem nossas opiniões acerca da nossa humanidade, propósito de vida, prioridades, classificação de valores, deveres, responsabilidades para com a família, interpretação da verdade, questões sociais, etc. Colocam o grau nas lentes que usamos para interpretar o universo ao redor. Chamamos essas lentes de COSMOVISÃO, e é com base nelas que fazemos nossas escolhas.


Cosmovisão:

Ninguém necessitava de um conhecimento histórico-científico sobre cadeiras. Quem as inventou, a evolução dos modelos, os materiais utilizados, as técnicas de feitio, a reação atômica do material quando nossa bunda descansa nos diferentes tipos de assentos. Nada disso era preciso. Qualquer um podia saber se uma cadeira era construída por um cristão ou não. Falo dos cristãos da época da Reforma que entenderam a Reforma. Quer saber se essa ou aquela cadeira, expostas logo ali, à venda, foi feita na marcenaria de um cristão? - alguém diria - Olhe a parte de baixo. Olhe naquele lado onde ninguém olha, a parte que fica escondida, os detalhes que ninguém vê. Se essas partes da cadeira foram construídas com a mesma qualidade e capricho das partes mais visíveis, então foi um cristão que a fez, pode comprar com tranquilidade.

Não estou dizendo que só os cristãos da reforma construíam cadeiras de qualidade, mas era muito mais provável que eles o fizessem. Porquê? Por causa da cosmovisão que a reforma trouxe sobre vocação [É com base na cosmovisão que fazemos nossas escolhas. Lembra?]. O homem percebeu que poderia glorificar a Deus não apenas como sacerdote, mas como sapateiro, professor, policial ou qualquer outra profissão exercida com diligência e honestidade. Essa mentalidade fazia parte dos nutrientes presentes no solo em que as raízes dos Estados Unidos foi plantada. Essa herança anglo-protestante mostra uma das razões da diferença entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. A maneira como pensamos determina o que nos tornamos.


Como estão nossas lentes:

Alguém diria - “Mas construir uma cadeira, extrair um dente, tirar o lixo, aplicar provas, fazer o teste de matemática, lavar a louça; criar, aprovar e executar leis; escrever, dançar, atuar, pintar, pegar um cinema, namorar... Tudo isso é parte do mundo secular, o jovem precisa se preocupar mais com as 'coisas de Deus', com a 'obra de Deus', como os ensaios do grupo de louvor, as orações, intercessões, cultos, evangelismos, ceia, batismo, ler a Bíblia...” Inegavelmente, é esse o dualismo que vivemos. Aquilo que é secular não tem muito a ver com os interesses de Deus, porque ele se preocupa é com as “almas”. Assim, fazemos como o doutor Frankenstein, que criou um corpo de corpos mutilados, que andava e falava, mas estava meio vivo, meio morto. Como diz a canção: “ Enquanto o domingo ainda for nosso dia sagrado [...], não tem jeito não”[1].

Nosso Teísmo é uma mistura de uma teologia esclerosada [2], com as outras duas outras grandes cosmovisões. Somos Animistas, quando adorar significa se emocionar, quando lutamos pela destruição de bastiões do inferno, fazendo de todo problema resultado da ação de satanás ou de maldições, quando fazemos “batalhas de oração” repreendendo a corrupção no governo, e não fazemos nada pelo governo além disso, quando evangelizar é ganhar as “almas”, quando suprimimos a razão para dar lugar a fé, quando dizemos que o homem só está aqui em espera pelo paraíso. Somos Humanistas, quando pensamos que nosso único dever com relação ao dinheiro é dar o dízimo e quando nossas decisões são determinadas pelo muro financeiro, quando todo problema é simplesmente uma questão circunstancial e física, quando achamos que o Serviço de Atendimento ao Consumidor não tem nada a ver com Deus, quando igreja e negócios são negócios à parte, quando, para usar a razão, suprimimos a fé.


Evangelho integral:

“Ele é a cabeça do corpo [...], porque foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio dele reconciliasse consigo TODAS AS COISAS, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz”[3]. O cristianismo é um sistema total de vida e pensamento. O único capaz de abarcar toda a vida de uma forma perfeitamente inteligível e lógica.

O cristianismo da Reforma estabeleceu um novo conceito da relação do cristão com o mundo. A visão medieval do universo olhava para o mundo como inerentemente mau e tudo precisava ser cristianizado para que pudesse ter real valor. Os poderes políticos, a ciência, as artes e qualquer outra manifestação cultural — tudo devia dobrar-se diante do poder da igreja. Essa mentalidade criou um mundo “gospel” paralelo, uma contra-cultura.

“Os reformadores não foram ingênuos em sua concepção do mundo: a queda afetou a harmonia cósmica, o mundo decaído “jaz no maligno” e o cristão deve empreender uma luta ferrenha contra o mundo, a carne e o diabo. Apesar disso, o mundo é criação de Deus, e ele o sustenta e preserva”[4]. Nós afirmamos que tudo é intrinsecamente bom, pois há uma verdade sobre todas as coisas. Assim, o mundo não precisa de evangelicaismos. Tudo pode apontar para a pessoa de Deus, e como ele mesmo fez, promovendo justiça e transformação. Nós somos completamente cristãos, à todo momento, todos os dias da semana e em tudo quanto fazemos. “Não há um milímetro cúbico em todas as áreas da existência humana sobre o qual Cristo, que é Soberano e acima de todos, não possa dizer ‘É meu!’ ”[5].

Temos que assumir nosso papel e começar a dar nomes aos animais. Nós é que criamos a história, não somos suas vítimas. Deus tem algo a dizer sobre a política, sobre a educação, saúde, artes, entretenimento, sobre família, relacionamentos, trabalho, sobre dinheiro, sobre o papel do homem, o valor da mulher, sobre negócios... O evangelho integral redime a cultura.

Se temos uma mente dualista, vamos gerar discípulos com a mesma mentalidade. É nossa escolha vivermos um cristianismo alienado do mundo, um cristianismo conformado com o mundo ou um cristianismo que impacta o mundo, no mundo, mas não do mundo.

Não acho que seja vantagem esperarmos para descobrir se o sal insípido apodrece ou não.

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[1]Em nome da Justiça (João Alexandre)

[2]Esclerose - Doença do Sistema Nervoso Central, lentamente progressiva, que se caracteriza por placas disseminadas de desmielinização (perda da substância - mielina - que envolve os nervos) no crânio e medula espinhal, dando lugar a sintomas e sinais neurológicos sumamente variados e múltiplos, às vezes com remissões, outras com exacerbações.

[3]Colossensses 1:18-20, Tradução NVI.

[4]Misael Nascimento, “A Reforma, O Cristianismo e a Cultura”, http://www.ejesus.com.br/home/exibir.asp?arquivo=5554.

[5] Kuyper, Abraham, Abraham Kuyper: A Centennial Reader, ed. James D. Bratt (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1998), 488.

2 comentários:

Anônimo disse...

É a integração que deveria nos ocupar; por que a preocupação com isso, 'integrar'? Porque pensamos de determinado modo, integrado - ou tentamos - e aí entramos na nossa igreja para o culto, e as pregações trazem o ranço 'nós/eles', 'isto é diabo, aquilo é de Deus' e nossa cabeça (pelo menos a minha) bagunça... e passo o resto da semana tentando rearrumá-la... ai ai...

Anônimo disse...

Cara.. tenho que pensar mais a respeito. Mas uma reflexão muito bem vinda. Como aliás, já é costume por aqui.